Você realmente acredita?
Há perguntas que muitas vezes não ousamos proferir. Preferimos deixa-las dormentes, em estado letárgico, como se pudéssemos anestesiar-nos tanto até não senti-las mais incomodando, rangendo, corroendo cada fibra de nossa existência.
Há perguntas cujas respostas fingimos satisfazer. Repetimos tanto até quase acreditarmos nelas. Só porque, na verdade, calamos a pergunta.
Há várias delas. Meses atrás, fui confrontada com uma. Uma apenas. Assim, direto. A pergunta incisiva e eu. Mas eu não estava só, para empurrá-la para debaixo do tapete ou tentar sufocá-la na areia do tempo. A pergunta simplesmente se personificou.
Mas, que pergunta é esta? Porque tanta delonga se poderia apenas escrever um curto diálogo – uma pergunta e uma resposta?
Não sei se são as perguntas-monstro, o monstro das perguntas, ou a monstruosidade das respostas a estas perguntas que me deixam assim, prolixa, temerosa, desconcertada até.
E como eu sempre digo aos meus alunos, futuros professores, o contexto é importante para que apreendamos melhor o significado.
Então, segue um breve contexto:
- Escola pública da Baixada Fluminense;
- Educação inclusiva;
- Classe regular com alunos surdos e ouvintes (acrescente entre eles um aluno ouvinte com deficiência intelectual);
- Uma professora sem conhecimento de Libras;
- Intérprete reporta que, apesar de estarem no sexto ano, muitos alunos surdos não sabem Libras!
- Intérprete com afastamento médico por mais de um mês;
- Trinta alunos, dois tempos de aula, sem recursos didáticos – a não ser os próprios, que a professora teima em levar para a escola;
- Reunião de pais, onde quase ninguém vai. Para uma aluna, comparecem juntos pai e mãe;
- Os pais já sofreram muito buscando ajuda para seus filhos, tentando inseri-los na educação formal e ansiando por tratamentos e acompanhamentos que amenizem a situação de seus filhos (muitos dos quais, além de surdos, apresentam síndromes de Asperger, autismo, entre outros problemas).
Então, o pai pergunta como serão as provas de outras disciplinas, se o professor só deu aula em português e apenas para os ouvintes.
Mas, a pergunta ainda não foi essa.
Deu para sentir a angústia na pergunta – na voz embargada, na raiva contida, nos olhos marejados. Ela estava ali, pronta para sair na voz daquele pai. Eu pude ouvi-la antes que ele a pronunciasse:
- Professora, você acredita nessa educação inclusiva?
Eu não pude mais evitá-la. Não pude mais fugir. Fui confrontada e tinha que dar uma resposta. Verdadeira:
- Não, senhor pai.
Não, não e não.
Essa não é a educação que eu gostaria que um filho especial tivesse. Não ficaria feliz com alunos de quatorze a vinte anos, especiais, ficassem em salas com crianças de nove a onze anos. Interesses são outros. Necessidades outras. Meu filho, sem entender, se sentindo perdido, fracassado, desorientado, dependendo da sorte de ter bons intérpretes e professores de boa vontade, em uma inclusão de mentirinha, numa farsa de um discurso que, de tão repetido, quase acreditamos.
Que eles estejam em escolas regulares, mas sem mentira, com pessoal de apoio especializado, realmente capacitado para lidar com suas necessidades, com professores que sejam preparados para lidar pedagogicamente com eles (e não adianta me dizer que tem que jogar toda a responsabilidade para a graduação, pois ela não dá conta de formar os professores para essa prática – façam as contas: são necessários dois a três anos para saber Libras de forma a se comunicar mesmo com os alunos, a legislação prevê quarenta horas em uma disciplina que pode ser ministrada de qualquer maneira. Isso só para ficar em um exemplo). Que sejam aulas que não “atrasem” os ditos normais e nem “arrasem” os que têm necessidades especiais.
Não, senhor pai. Eu também estaria agoniada, irritada, com muita raiva desses que querem me fazer crer que assim é possível. Uma turma com trinta e três alunos, sendo quinze surdos.
Mas, obrigada por me obrigar – ainda que não o soubesse – a responder a pergunta que eu escondia, pois eu me ressentia de sentir tudo isso e achar que estava nadando contra a maré. Mas, esse texto ainda é melhor e mais útil que meu silêncio conivente.