Você também não é o Charlie.
Na semana passada, parecendo ignorar toda a onda de manifestação Je suis Charlie depois do atentado à redação do Charlie Habdo, publiquei uma crônica sobre educação de pais. E só.
Algumas pessoas me perguntaram por que eu não havia escrito uma linha em homenagem aos cartunistas que foram covardemente assassinados, se tanta gente estava se manifestando no mundo inteiro. De fato, havia várias razões pelas quais eu não comentei o caso. Primeiro, porque todo mundo estava comentando. Aliás, gente demais, de repente, começou a se mostrar profundos conhecedores de toda a história e trajetória do semanário, do Islã, da liberdade de expressão e tudo o mais. São os pseudo intelectuais que lotam as redes sociais.
Em segundo lugar, não comentei por pura ignorância mesmo. Difícil assumir o desconhecimento em uma época em que as pessoas leem apenas manchetes de notícias ou repassam informações sem checar sua veracidade. Todos precisam mostrar que sabem. Acho interessante o desenho infantil Peppa, pois o Papai Pig vive dizendo que é perito em alguma coisa. E eu vejo um monte de gente que é perito em opinar, concordar, repassar conteúdo, mas tentando jamais revelar sua ignorância sobre o assunto.
Assim, li alguns textos muito interessantes, busquei me informar mais a respeito da publicação, a qual eu nunca havia lido antes – nem vários dos intelectuais instantâneos que surgiram depois do atentado. Tentei compreender até mesmo as teorias conspiratórias que começaram a surgir – pasmem...
Contudo, ainda sem saber o “motivo” (se é que saibamos mesmo até agora) que levou a esse atentado, quero deixar claro que repudio qualquer forma de violência. Nada justifica o que aconteceu por lá. Nem de um lado. Nem de outro.
Como li em algum lugar, parece que os brasileiros, na semana passada, viraram defensores da liberdade de expressão – da França. Sim, pois viraram defensores dessa liberdade de expressão do politicamente incorreto justamente uma semana depois de massacrarem Renato Aragão por ele ter dito que os feios, negros e gays não se ofendiam antigamente.
Pelo que vi, eu não seria leitora do semanário francês e não curtiria suas charges. Não sei até que ponto a tal revista, assim como vários programas de “humor” por aí, realmente utilizam sua liberdade de expressão ou simplesmente dela abusam para manifestar, veicular e reafirmar preconceitos e estereótipos.
Lembro-me de uma cena do filme Escritores da Liberdade em que os alunos fizeram uma caricatura de um rapaz negro da turma. A professora pegou o desenho e disse que havia visto um similar, só que em um museu. E era de um judeu. Falou que é assim que se começa a incitar o ódio por um povo, publicando desenhos desse tipo em jornais. Foi assim que começou o holocausto.
Na minha opinião, estereótipos sem fundamento, preconceitos velados e abertos, estão nas piadas, nos desenhos caricatos retratando pessoas ou religiões. Portanto, não venham me dizer que a caneta não é capaz de matar. Isso seria subestimar o poder de propagação de ideologia que um desenho dessa natureza possui.
Se eu estiver errada, então comecemos por parar as campanhas antibullying, dizendo aos tantos jovens que sofrem pressão emocional e psicológica com desenhos de colegas e demais postagens na internet que tudo apenas faz parte da liberdade de expressão de seus colegas.
Eu não faço e tampouco divulgo piadas, textos, desenhos de “humor” que sejam racistas, homofóbicos, contra qualquer religião ou com algum outro teor preconceituoso. Pregamos um viva à diversidade. Só no discurso. Escarnecemos do que é desconhecido, diferente. Somos ignorantes quando o fazemos.
Sou a favor da liberdade de expressão. Apesar de não concordar com alguns pontos de vista, luto para que todos tenham o direito de se expressar livremente. Lamento profundamente o ocorrido, pois, afinal um erro não justifica o outro, seja por qual motivo for.
Todavia, não me pronunciei antes porque a onda Je suis Charlie não foi para mim. Foi algo ingênuo, repetido por muitas pessoas sem nem mesmo compreender porque repassavam o slogan. Eu não sou Charlie. E você também não é.
Hoje escrevo porque Je suis Alex. O jovem aluno de mestrado da UFRJ que foi morto em um assalto no dia nove de janeiro. Je suis Mausy Bastos, sua mãe indignada, lamentando a dor e os presentes de natal que seu filho não poderá usar. Je suis Tayenne Rodrigues, a jovem de vinte e dois anos, cheia de sonhos e planos para o ano de 2015, os quais foram exterminados brutalmente às sete horas da manhã do dia primeiro, quando voltava do réveillon de Copacabana, já em Belford Roxo.
Je suis os milhares de negros que são mortos em nosso país e os pobres que definham nos hospitais públicos. Je suis o medo dos moradores de São João de Meriti e adjacências com os tiroteios a qualquer hora; com muretas, escopetas e todo o tipo de “capeta” à solta.
Je suis os Amarildos e as Haíssas que morrem por “engano” policial. Talvez je suis as Marias e Clarices de outrora.
Je suis Baga com suas duas mil vítimas na Nigéria. Je suis aquelas meninas de dez anos com bombas presas a seus corpos. Je suis a fome, a pobreza, a discriminação, a má distribuição de renda, o medo da liberdade de ir e vir pelo medo que sentimos aqui em nosso país – seja que hora for.
Então, por isso je ne suis pas Charlie. E, sinceramente, acho que você também não é.