Textos
Vende-se
Vende-se professora quase aposentada, retinas cansadas, ilusões desfeitas, mas dessas que ainda se respeita. Cabelos grisalhos, sorriso comedido. Deu sua vida pela educação, mas aqui não tem mais serventia, não.
Vende-se brinquedo artesanal, desses para brincar com a imaginação. Não usa pilha, bateria, nem eletricidade. Só precisa de tempo e boa vontade. Motivo: trocado pela tecnologia alienante.
Vende-se todo o oxigênio do planeta em nome da modernidade. Todas as árvores por um sinal livre de wi-fi. Toda a sensatez pelo desejo de se querer mais.
Vende-se uma infância perdida para a adultização. Vende-se o sorriso inocente, as ideias mirabolantes e os planos infalíveis. Motivo: infância deturpada pelos meios de comunicação.
Vendo currículo Lattes impecável, repleto de publicações nunca lidas e apresentações em congressos que sequer foram ouvidas, feito a base de muitas horas de trabalho, sem alimento, sono nem tempo para a vida.
Vendo o almoço para comprar o jantar. Para equipar a cozinha, vendo a sala de estar. Vendo o presente por um futuro promissor. Assino promissórias com parcelas pesadas. São pagas com escasso recurso não renovável chamado vida.
Vendo tudo o que acumulei do trabalho de uma vida inteira: essa casa, que deixou de ser um lar; essas dívidas do que comprei sem nem me lembrar; essas olheiras de ver e não enxergar e esse remorso por não poder mais voltar.
Solimar Silva
Enviado por Solimar Silva em 25/09/2014
Alterado em 08/05/2020
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